“Qualquer que fosse seu nome, aos olhos de Quincas era uma Vênus.”
Essa Vênus se chamava Eufrásia Teixeira Leite. Quase 90 anos após sua morte, sua vida vem à tona na prosa de Ana Maria Machado. Já Quincas, ao contrário de sua musa, é mais conhecido. Trata-se do abolicionista Joaquim Nabuco. Em Um mapa todo seu, a escritora nos traz a história dos dois em forma de ficção. Para mim, uma verdadeira surpresa que quero contar desde o início.
Minha experiência com esta leitura começou quando soube que Ana Maria Machado estaria em Santiago para um encontro à convite da Facultad de Educación da Pontificia Universidad Católica do Chile. Me inscrevi para participar e escolhi ler algo da sua obra para me inspirar. Optei por Um mapa todo seu por ser a mais recente (2015) e também porque a sinopse indicava tratar-se de uma ficção baseada em dois personagens reais da nossa história. De imediato, reconheci que se referia à vida do abolicionista, porém, nunca tinha ouvido falar de Eufrásia. E, não renegando a importância histórica dele, é a vida dela que me parece merecer este livro. Por isso, opto por colocá-la no centro da minha leitura. O que não impede que cada leitor tenha uma visão diferente.
Eufrásia nasceu em 1850 na região que hoje conhecemos como o município de Vassouras, no Rio de Janeiro. Sua família era formada por barões do café. Ou seja, era muito rica. O que distingue sua história foi o rumo que sua vida tomou depois da morte dos pais e ela, ainda muito jovem, se viu sozinha com a irmã Francisca. Neste momento, esperava-se que ambas seriam acolhidas pela família de um tio que conduziria a situação arrumando-lhes casamento e administrando a fortuna.

No entanto, diante do espanto de todos, Eufrásia recusou assistência. Como havia recebido uma boa educação e tinha consciência disso, considerou-se apta para tomar decisões práticas que o momento exigia e assumir a responsabilidade da sua vida e da irmã. O interessante desta situação é que, a despeito da estrutura patriarcal em que vivia, o próprio pai a teria preparado para assumir este papel, incentivando-a a estudar e encorajando-a a ter uma postura independente. O mesmo não se pode dizer do restante da família.
Não se sabe ao certo quando Eufrásia conheceu Joaquim. O romance sugere que o primeiro encontro pode ter acontecido antes que ambos embarcassem no mesmo vapor para a Europa em 1873, quando as irmãs partiram para viver em Paris. Se apaixonaram. O jovem pernambucano, vindo de uma família de políticos, tinha um futuro promissor e era o que se podia chamar de “bom partido”. Desejava se casar com Eufrásia, porém, por mais que ela o amasse, não estava disposta a abdicar de sua independência.

A essa altura, Eufrásia se tornava uma grande administradora de sua fortuna, formada por títulos públicos e ações de mais de 200 empresas, o que equivale dizer hoje que seria uma profissional do mercado financeiro. A sinhazinha diversificou os investimentos antevendo que o café, cultivado através de técnicas ultrapassadas e de um sistema escravagista, já estava iniciando seu ciclo de baixa.
O pano de fundo para o romance dos dois é justamente o ciclo econômico do café com mão de obra escrava e estrutura familiar patriarcal. Nesse momento, a produção começava a dar sinais de queda devido ao desgaste do solo e já ocorriam movimentos abolicionistas. Em 1850, foi promulgada a Lei Eusébio de Queirós; em 1871, a Lei do Ventre Livre; em 1885, a Lei dos sexagenários e em 1888, a Lei Áurea.
Durante este período a vida dos dois deu voltas entre o Rio, Recife, Paris e Londres. Enquanto Eufrásia assumiu as rédeas dos negócios quando seu pai morreu, Quincas sentiu-se sem rumo quando perdeu o seu. Ainda não tinha tomado decisões definitivas com relação à sua carreira. Enquanto ela se dedicou à sua atividade profissional, ele rumou para a política e, aos poucos ganhava credibilidade para a bandeira pela qual realmente decidiu defender: a libertação dos escravos.
Eufrásia e Joaquim foram duas pessoas à frente de seu tempo. Ela não se submeteu a um modelo como ter que pagar um dote para casar. Ele foi um idealista que acreditava que o Brasil precisava avançar na questão social abolindo a escravatura para implementar um novo sistema econômico condizente com uma pátria livre. O dilema era que ambos não desejavam abrir mão de suas prioridades.
Um mapa todo seu é fruto de muita pesquisa da autora. Reflete um período importante da história e ajuda a compreender mais de perto como vivia a elite da nossa sociedade e os fatores que levaram a assinatura de uma lei cujo processo e consequências ainda afetam aos que descendem desta atrocidade que foi a escravidão. É uma narrativa rica por mesclar fatos e imaginação pois, apesar da pesquisa de documentos históricos, recompor emoções, diálogos, encontros, requer um dom especial. Ana Maria Machado tem esse dom.

E, voltando à visita de Ana, adquiri a edição em espanhol de Menina bonita do laço de fita que aqui foi traduzido para Niña bonita. Fazendo um paralelo, se em Um mapa todo seu temos a luta da abolição, nesta obra infantil se aborda a questão da miscigenação e da valorização da etnia. Sendo uma história para crianças, a abordagem é singela, mas nem por isso deixa de estar carregada de simbolismo.
Em um país em que vivemos o mito da democracia racial e não se compreende a importância da representatividade negra, é importante que as gerações futuras possam, através da literatura, acercar-se de temas como esse.
Além disso, perceber o interesse pela obra de Ana Maria Machado além das fronteiras reforça a crença de que temos muito a aprender trocando experiências através da literatura latino-americana.
Gostou da resenha e quer ler os livros? Você pode acessá-lo clicando na imagem abaixo. Comprando pela Amazon, você me ajuda a manter a página e não paga a mais por isso.
Título: Um mapa todo seu
Autor: Ana Maria Machado
Gênero: Ficção / Romance
Ano: 2015
Editora: Companhia das Letras
Selo: Alfaguara
ISBN: 9788579624414
Páginas: 224
Capa: Claudia Warrak
Título Original: Menina bonita do laço de fita
Autor: Ana Maria Machado
Gênero: Infantil
Ano: 2000
Título em espanhol: Niña bonita
Editora: Ediciones Ekaré
Ano edição: 2016
ISBN: 978-84-934863-4-1
Páginas: 24
Edição a cargo de Elena Iribarren
Direção de arte: Irene Savino
Desenho: Jacinto Salcedo
Tradução: Verónica Uribe
Ilustrações: Rosana Faría
Deixe um comentário